É precisamente
da leitura da Constituição (art. 103-B, § 4º) que não se pode inferir conforme
o entendimento dos segmentos corporativos da sociedade brasileira de que os
Ministros do STF não se acham submetidos ao controle externo e social, o qual detém
natureza puramente administrativa. Sobre isto, a Carta não faz acepção de Juiz
algum e o entendimento dessa insubmissão importa dizer que os Membros da
Suprema Corte não são Juízes ou, sendo Juízes, não estão sujeitos à ordem normativa
estabelecida para todos.
Do ponto de
vista do sistema constitucional, o argumento parece absurdo, porque reserva a
determinada categoria funcional um feixe de privilégios inteiramente fora de
contexto.
O que se
passa, na verdade, é que o sistema do controle externo da Magistratura Nacional,
sempre rechaçado, mediante sólidos consideranda,
conquanto acidentais, pelos arautos do corporativismo estratificado em nosso
país, acabou sendo tolerado na Constituição com incompletudes conceituais.
Em primeiro
lugar, as composições do CNJ não deveriam ser eleitas do modo como presentemente
o são. Essas composições deveriam ser popularmente submetidas ao processo
eleitoral comum, pois o controle externo e social é para ser exercido por
representantes diretos do povo, sem exclusão dos segmentos de juristas, mas não
exclusivamente com eles e por eles. Por outro lado, conforme se possa
compreender, em hipótese, a existência de conflitos entre a jurisdição de
última instância e a circunscrição administrativa também de última instância em
sede de controle externo (não se trata aqui de controle interno da
Administração Pública), sucede que o controle para um tal tipo de conflito
institucional deve ser resolvido politicamente, mediante procedimento próprio a
ser submetido, de lege ferenda, ao
Senado Federal como nos casos dos crimes de responsabilidade atribuídos a altos
dignitários da República.
Este momento
de crise institucional em que se acha efervescente o debate público sobre os
limites da atuação do CNJ, enquanto agência constitucional para o controle
externo da Magistratura, já se divisou desde antes da Constituição de 1988 e
mesmo depois do seu advento. A resistência corporativa à instituição de um
órgão para o exercício desse tipo de controle sempre pareceu figadal aos demais
segmentos da Nação. Há um artigo da lavra deste autor, publicado na Revista dos
Tribunais ainda em 1994 sob o título Judiciário
Envergonhado: argumentos no favor do seu controle externo (ano 83, jan/94,
vol. 699, págs. 243 e SS), que retrata bem o cenário em que presentemente está
mergulhado o país.
Quanto à
avaliação que esses mesmos segmentos corporativos vem procedendo acerca do estilo
da Ministra Eliana Calmon, discorda-se em gênero, número e grau das críticas
que lhe vem sendo injustamente desferidas. A obra da Corregedora Nacional de
Justiça é irreprochável e não merece reparos. O combate à corrupção tem de ser
intrépido, contundente, para não deixar pedra sobre pedra. Pois, do contrário
estaremos fazendo um exercício de conciliação entre ordens virtualmente inconciliáveis
e isso é rigorosamente paradoxal. E nisto também reside o maior dos perigos
para a estabilidade social. Segurança jurídica não pode servir, ainda que
inconscientemente, como pretexto ou instituto de proteção da clandestinidade, da
fraude e da esperteza. Tudo isso que à luz do sol se dissipa e que um argumento
ingênuo de generalização corrobora. Segurança jurídica, que é mínimo de
Justiça, também é móvel de sustentação normativa do Estado racional, o qual
deve manter a paz e a Justiça, mediante um tratamento igualitário rigorosamente
a todos, e não apenas àqueles áulicos que se esmeram na arte de adular
poderosos, em cujos palácios, afinal, tudo se arranja à revelia da Nação.
Sossegue o
leitor ainda preocupado com os acontecimentos de fato perturbadores que
assistimos no Brasil, hoje! Do caos é que provém a ordem mais consubstancial
aos valores essenciais. Quem está acostumado com privilégios não sabe se
conduzir solidariamente, e por isso resiste. É muito difícil ser diferente,
sobretudo numa sociedade de economia periférica como a nossa. Para os que
sofrem, quanto pior melhor, porque o atual sistema não pode subsistir por muito
tempo mais. Está absolutamente decadente, é retrógrado, é injusto e
excludente, e não está, por isso mesmo, de acordo com o espírito da
Constituição Cidadã.
Uma nota conjunta
das associações de Magistrados que suscita enquadramento da autoridade que
agiu de conformidade com o seu próprio regimento funcional (se
inconstitucional esse regimento referido em norma resolutiva, segue-se aí outra
história) serve apenas para acelerar o processo, já de todo traumático. O bom de
tudo é que se pode pressentir que o país está chegando ao ponto em que o
controle externo e social da Magistratura pode deixar de ser simplesmente
seletivo, um mecanismo mais ou menos de fiscalização, conforme tem acontecido até
agora e desde o seu nascedouro em 2004. Podemos estar vivenciando o anticlímax
para o aprimoramento definitivo dos mecanismos de controle da Magistratura e do
Poder Judiciário entre nós, sem eufemismos.
O Congresso
Nacional deve se debruçar sobre essa matéria, liquidar de vez a apreensão institucional
disso resultante e recorrente, e incluir os enunciados que não foram incluídos
à época, ante razões corporativas que ainda bradam com grande desenvoltura e
presunção. Sobre isto, dentre outros enunciados, sugere-se acrescentar,
mediante Proposta de Emenda Constitucional, um novo inciso ao art. 52, da Carta
(inc. II-B), para que se garanta uma nova competência ao Senado Federal,
traduzida em processar e julgar os
conflitos, em última instância, entre a Jurisdição e o Controle Externo, exercido
nos termos do art. 103-B, § 4º, da Constituição.
Os tempos são
outros, porém muita gente com uma mentalidade ultrapassada ainda continua na
cena política e funcional do Estado brasileiro. É preciso virar essa página de
nossa história, o que não se fará sem traumas. O processo está apenas
começando.
Outrossim, o
destemor só prevalece, mesmo no Estado de Direito, em termos relativos, porque
o autoritarismo, quase sempre disfarçado e que ainda afeta gravemente sociedades
do tipo da nossa, não tem freios e nem regime de controle eficaz, e é do costume
adjudicar para si o discurso ético como forma subliminar de conservar as suas
práticas avelhantadas. É dessa atmosfera que ressaltam as chamadas ditaduras de
ocasião, ou dissimuladas.
Por enquanto,
o STF é mesmo o órgão da República que detém o proverbial predicado de errar
por último, mesmo em sede de constituição acessória e acidental de políticas
públicas, sendo que esse paradigma pode não mais corresponder aos ditames da
pós-modernidade. Por isso mesmo, não por acaso a derrocada do comunismo
aconteceu num átimo, a despeito de suas estruturas mastodônticas e tradicionais.
O debate em
comentário não se encerra enquanto a Constituição se mantiver arranhada em
pontos substanciais de suas normas e valores. O caráter seletivo da
responsabilização jurídica com que se exercita o poder público retira o
conteúdo democrático e republicano de sua atuação e dos fundamentos com que se
estabelece. Esses fundamentos são, pois, consubstanciais ao caráter pétreo de
várias das normas constitucionais em alusão, como a separação dos poderes, a igualdade
perante a lei (equal justice under law)
e a soberania do povo.
Roberto
Wanderley Nogueira
Doutor em
Direito Público
Professor-adjunto
da UFPE e da UNICAP
Juiz Federal
em Recife